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segunda-feira, julho 21

As caixas

A minha amiga andava em mudanças. Ela anda em mudanças desde que a conheci, de certa maneira. Convidou-me para ir ver a casa nova e eu, como é hábito, cheguei mais cedo. Comprara um ninho de dois pequenos andares, encavalitado na copa dum prédio entre Santos-o-Velho e a Lapa, entre a boémia e a fineza - sim, lembro-me de ter pensado, entre todos os recantos da cidade, só este poderia ela habitar - e, quando lá cheguei, ela valsava com um cartaz vintage emoldurado por entre fichas triplas, sofás plastificados, dois brasileiros da tv cabo, malas de viagem e produtos de limpeza.

Estava macambúzio por razões que moravam para lá daquelas paredes e alegrou-me imensamente, não sei ao certo porquê, quando ela me confiou o seu par na dança, mo pediu que o pendurasse e me prometeu mais na volta. Estava a ser explorado e adorava sê-lo. Depois, peguei num pano do pó e subi as escadinhas de caracol. No cimo da espiral, o quarto dela ocupava o sótão do prédio. O clarão poeirento vindo da janela envolveu-lhe o corpo e fê-la brilhar como as santas das gravuras góticas, as pontas dos cabelos ruivos transformaram-se em fios de cobre descarnados, espalhando uma energia invisível por todo aquele que ousasse aproximar-se. Gostei daquele brilho. Fez-me lembrar outras eras, quando toda a multidão pensava o mesmo, fazia o mesmo, sentia o mesmo e eu olhava em redor em busca dum rosto diferente e aí estava ela, também a olhar-me, procurando o mesmo. Formava-se então uma clareira invisível, mas sensivelmente do tamanho daquele sótão, e nós no meio, a observar a carneirada, não nos sentindo nem superiores nem inferiores, simplesmente a gozar o prato e a gozar o facto de termos o que é preciso para gozar o prato e de termos companhia nisso.

Ajudei-a a limpar o pó às madeiras e a aspirar o colchão e, quando terminei, ela abriu um armário e tirou de lá um monte de caixas de cartão, que me pediu para arrumar nas prateleiras nuas da parede junto à boca das escadinhas. As caixas estavam marcadas com nomes: André, Gustavo, António, Nuno, e eram tantas que, cada vez que eu levava uma pilha para arrumar e voltava, mais iguais a essas me aguardavam, no chão, formando um pequeno muro.
- O que são? - perguntei.
- Cada uma é de um ex diferente. Podes ver, se quiseres.
- Acho que não devia...
- Estás à vontade.

Abri uma para espreitar: cartas, poemas de amor foleiros e arrebatados, rosas secas, fotografias. Abri outra e outra e outra, cada homem diferente dos demais, todos eles iguais, troféus da mais sangrenta das guerras, mas que não vem nem nunca virá nos livros de história. Suspeitariam eles que aqueles pedaços de matéria orgânica que os fizeram passar noites em claro poderiam vir a ter o seu descanso eterno encaixotados num jazigo colectivo? Quanto de cada um de nós definhará em caixas empilhadas por essa terra fora? E ela não é nenhuma caçadora de cabeças. Essas não fazem prisioneiros. Apenas uma mulher normal, nem uma santa, nem uma puta. Uma mulher com caixas.
Coisa estranha, o amor: num momento, é grande demais para o mundo, noutro cabe numa caixa de sapatos.
Os leitores amigos que me perdoem este inqualificável momento de pieguice e considerem-no como fruto de um estado incapacitante transitório. Retomaremos a programação normal dentro de momentos, com toda a sordidez e crueza a que vos habituei e a que têm direito. Prometo.

segunda-feira, julho 14

Pérolas a Porcos

À Andreia e ao Daniel (o nome da personagem não tem nada a ver, amigo).
Di e Sofias: se não souberem donde fui buscar esta ideia, lembrem-se daquela tarde no Castelo...
Tudo na mesma cumá lesma. São oito e meia da manhã, o dia ainda mal rompeu, mas o Daniel já está cá fora, na exploração (chamar quinta àquilo é uma ofensa às quintas a sério), de galochas e gabardina de plástico amarela florescente, atolado em merda até aos joelhos (o esterco infiltrando-se pelo cano das botas, acumulando-se junto aos calcanhares: no final do dia, quando se descalça, os peúgos aguentam-se de pé sozinhos), pensando andei eu a estudar quatro anos para isto. Entrou no grande armazém das bestas (chamar àquilo estábulo seria uma ofensa aos estábulos a sério). Assim que passou da porta, a pestilência dos porcos trepou-lhe pelas narinas. Ainda só tinha comido uma torrada e bebido café e estava de ressaca da noite anterior. Debruçou-se sobre uma das vedações e gregoriou o recheio das entranhas para o meio do estrume. Um dos porcos aproximou-se e pôs-se a abocanhar-lhe o pequeno-almoço liquefeito, focinhando de borco com a ventosa peluda. «Isto vai ser um dia bem longo!», pensou, ao bochechar com água da mangueira para enxaguar da boca aquele gosto acre.

Depois, pousou no chão do lado de fora a mochila e as vasilhas, calçou umas luvas de borracha das obras, que fez estalar com um beliscão, como os cirurgiões da tv fazem às luvinhas de látex, e avançou sobre o primeiro freguês do dia.
— Fica quieto, meu cabrão sortudo, não faças a cena mais degradante do que já é.
Chegou-se ao porco, agarrou-lhe o membro com a ponta dos dedos de borracha. Tinha a cara amarelecida de nojo e pensava em futebol para não vomitar de novo, os melhores lances da jornada sobre a lusalite do telhado para onde fugiu com os olhos. E começou a agitar, para cima e para baixo, para cima para baixo, cima baixo, freneticamente, olhando para longe, pensando Benfas, rabo da Mónica, aquela esquerda épica da Cova do Vapor, no fim-de-semana passado. Era oficial: aquele era o pior emprego do mundo. Tinha amigos a bulir em sítios bem maus, mas aquilo batia tudo: masturbador de porcos. É claro que não era essa a sua única tarefa na exploração de suínos da A.M. Casais Militão & Filhos, mas uma vez por semana já sabia que lá tinha de ir de vasilhas às costas esgalhar a pívia semanal aos porcos sementais do curral, para depois inseminar artificialmente as porcas, que estavam presas noutro pré-fabricado, do outro lado do baldio.

— Por que raio não deixam os porcos e as porcas à solta juntos e eles que se entendam? Viviam mais felizes eles e eu! Cabrão do velho!
Mal ele tinha acabado de desabafar com o porco, que parecia agora ter ganho um sorriso estúpido à medida que o membro bestial se lhe intumescia e já roçava o estrume, quando o velho Militão, o patriarca da empresa, entrou no armazém.
— CANOAAAA!!! Estás aí?
«Sim, mas estou com as mãos ocupadas», apeteceu-lhe responder.
O velho era gordo e imenso, parecido com os bichos de que sacava o ganha-pão. Pequeno e redondo, não se lhe via o cinto ao coberto da pança. A cabeça era redonda, calva e muito branca, os olhos e a boca eram pequenos, demasiado pequenos, como três frestas abertas à pressa pelo Criador tentando remediar as coisas quando se apercebeu que o modelo vinha com defeito. O patrão foi-se plantar ao pé dele, mãos na cintura, a abanar a cabeça.
— O que se passa? — perguntou o Dani, de cócoras com o membro do bicho na mão.
— Mas tu queres matar o pobre animal? É assim que tu fazes a ti próprio?
— É um porco, senhor Militão, não me parece que…
— Não me venhas cá com teorias! Ainda tu não eras nascido já eu criava porcos! Não vos ensinam nada de jeito na universidade?
Fica o apelo ao conselho científico do Instituto Superior de Agronomia: incluir no plano de estudos a cadeira prática de Técnicas de Masturbação de Gado Suíno.
— Para ti pode ser uma besta, mas o porco é um animal sensível! Aprende com quem sabe, há cinquenta anos que vivo no meio dos porcos!
«O melhor é não entrarmos por aí…», pensou ele.
— Como quer então que faça, senhor Militão? — perguntou ele, mas o que lhe deu mesmo vontade de responder foi «se está à espera que lhe sopre no ouvido e lhe diga que o amo, bata-lhe a pívia você».
— Tens de sentir o porco, Canoa, sentir o porco! Para já, tira-me essa merda dessas luvas! Como é que queres ter sensibilidade nas mãos com essa borracha toda?
— Senhor Militão!
— Estou à espera!
«Muito custa ganhar a vida!», pensou ele, enquanto se desembaraçava das luvas.
— Vês como a coisa marcha logo doutro jeito? Suavidade, Canoa, suavidaaade!
Assim que o velho deixou o armazém, ele tornou a calçar as luvas, agarrou no animal pela picha, insensível à guincharia, e desatou numa ordenha tão violenta que, passados poucos segundos, o porco já esguichava o seu líquido fétido e amarelento. Então o Daniel levantou-se, tirou as luvas e acendeu um cigarro. O orgasmo dum porco dura qualquer coisa como vinte minutos. As primeiras esguichadelas nem vale a pena colher, estão pejadas de impurezas, e a parte do fim também não interessa pois praticamente não tem semente. Era fazer o servicinho medonho e deixá-lo esguichar tipo torneira durante uns cinco minutos: só do sémen do meio é que se faz a colheita para inseminação. O Daniel suspirou, vendo o porco estrebuchar de prazer. Tinha o focinho regalado, feliz, quase sorridente.
«Ri-te, ri-te, meu cabrão! Vamos ver quem ri quando fores uma barra de fiambre! Para ti não há esperança nem salvação. Olha bem para ti, nem consegues virar os olhos para o céu!». Depois, olhou em volta, para as dezenas de porcos que faltavam para o dia estar feito e sentiu vontade de morrer ali mesmo.

A exploração ficava para os lados de Palmela, um aglomerado de armazéns de cimento e chapa ondulada donde se ouvia o rugido dos carros a passar na A2. Tudo o que de bucólico pudesse haver naquela quinta havia sido exterminado no dia em que daquele chão ameno e soalheiro das terras do moscatel brotou mais uma máquina de terror agro-industrial. Além dos porcos, havia também um aviário de frangos. O que valia era aquilo ficar a vinte minutos de casa: nunca apanhava trânsito de manhã pois rolava sempre ao contrário do resto do mundo. Era o que tinha de bom aquele emprego, a única oferta que lhe apareceu quando terminou o curso de engenharia agronómica no ISA. A ganhar 800 euros por mês, sem subsídio de férias nem de Natal, a recibos verdes, naturalmente, e aturar o Militão mais as carências afectivas dos seus porcos cinco dias por semana das oito às cinco, quase que mais valia estar em casa sem fazer nenhum, mas enfim. A ideia original era ficar ali uns tempos a ganhar o dele até abrirem concurso para uma bolsa de investigação científica para ir trabalhar nos laboratórios de certo Instituto. Já lá iam seis meses. O concurso lá abriu, mas, para surpresa dele, não passou duma formalidade como qualquer outra: a bolsa já tinha dono muito antes de ser atribuída.
O regulamento tinha a assinatura oculta do Senhor Cunha, essa eminência parda sem cujo beneplácito ninguém na Tuga sai da cepa torta. No artigo 4.º lia-se:

“Destinatários
Podem candidatar-se à presente Bolsa os candidatos, cidadãos nacionais ou estrangeiros, que reúnam os seguintes requisitos:
a) Licenciatura na área da Engenharia Agronómica, Biologia Celular e Molecular, Bioquímica, Biologia, Química Aplicada, ou afins;
b) Fluência nas línguas inglesa e neerlandesa, falada e escrita
c) Gosto por desportos e actividades ao ar livre, especialmente no meio aquático;
d) Habilitação para o exercício da actividade de instrutor de vela.”

Curiosamente ou não, o único sócio a concorrer que preenchia todos os requisitos era o sobrinho recém-licenciado da directora do laboratório, que havia passado um ano em Erasmus na Holanda e até tinha a tal licença de instrutor de vela, absolutamente essencial para desenvolver projecto em laboratório na área da biotecnologia em qualquer parte do mundo! Em Portugal, pelo menos, assim é.
Não faltava quem dissesse que o ideal é um gajo pirar-se para o estrangeiro quanto antes e tínhamos amigos que foram por essa via, mas o Daniel não via as coisas desse modo. Se Portugal é um país rico, por que raio não temos o direito de ganhar o nosso pão na nossa terra com dignidade? Além disso, no estrangeiro, mesmo na União Europeia, eles protegem a prata da casa, é natural que assim seja. Nós aqui nem para nós próprios somos bons.
— CANOAAA! — soou novamente a voz áspera do velho Militão — Em quantos já vais?
A resposta do nosso Dani não lhe agradou e começou a desancá-lo forte e feio.
— Senhor Militão, o senhor disse-me para ir com calma, com suavidaaaade, isso leva mais tempo!
— E ainda respondes! Eu disse para fazeres isso com suavidade, mas também não é preciso levá-los a jantar e ao cinema!
O velho virou as costas e foi-se embora. O Dani, de cócoras, enterrado em esterco e com o membro do porco a palpitar na mão teve então um instante de iluminação triste, viu com total clareza ao que chegara a sua degradação. Se fosse homem de chorar, teria chorado.
«Diga-me você que tipo de filmes é que eles gostam, afinal é você quem vive no meio deles há cinquenta anos!», era o que lhe devia ter dito, pensava o Dani, o sacana ia ver!
No final do dia, exausto e a tresandar a suor e a estrume, pôs o motor do carro a trabalhar. Havia uma barraca com chuveiro onde se podia lavar, mas tinha sempre fila e ele preferia empestar o carro com aquele fedor a passar um minuto mais do seu dia ali metido. No caminho para a estrada, passou por um antigo curral, que já estava praticamente desactivado pois o velho havia entretanto mandado fazer um maior e melhor na outra ponta da exploração. Lá dentro, com as primeiras chuvas do Outono, haviam brotado do esterco inculto vários tufos de azedas, cobrindo o chão com as suas florzinhas amarelas.

sábado, julho 12

A morte do artista

Conforme já é tradição, aqui coloco as primeiras palavras dum novo livro. Esta é uma primeira versão, que provavelmente será muito revista, mas aqui fica (o texto anterior - 124 Via Lenta - também integrará este mesmo romance - qual a ligação entre os dois? Isso depois verão).

No deserto não há acácias, mas estariam a apodrecer, se as houvesse, lançando na brisa de Maio um odor putribundo e suado de alcova manchada de amor culpado. No deserto não há acácias, mas havia ela e ele num jipe que mastigava cascalho pela pista.


Ela, ao volante, de lenço lilás a amparar-lhe os cabelos negros. A paisagem estéril e o céu nu desfilavam-lhe com as suas misérias ao longo dos óculos escuros num reflexo de fantasmas esverdeados e, sob as lentes, um olhar que ele sabia tão opaco como elas, aquele olhar imperturbável de esfinge que ele sentia cravado no peito, bombeando ácido como o ferrão órfão duma abelha que se passou dos cornos. Os ombros dela, descobertos, amorteciam os acidentes do mapa e ele seguia com os olhos balanço daquela carne de bronze, o bronze duma medalha e dum pódio que umas vezes sabia ser seu, outras supunha, outras não, outras talvez e outras assim-assim.


Ele, enterrado no banco, temia aquele silêncio como temia dizer algo. Chamou-a então de mansinho: — Lara… — um solavanco do carro estragou-lhe o ambiente, mas ele esperou que o esgar de desconforto se lhe dissipasse dos lábios e insistiu, com a mão sobre a dela e a dela sobre o manípulo das velocidades: — Lara… Quero-te.


E ela sorriu porque tinha de sorrir e deitou-lhe um olhar seco. Seco, seco, seco como o deserto reflectido na película opaca dos óculos escuros. E ele, calado, encolheu o peito, desolhou e fixou-se no pó do ermo, na esperança que lhe secasse as lágrimas, escondidas na soleira das pálpebras, e o ferrão mais se crava e mais vaza, vaza, vaza veneno, foda-se, pensa ele, por que nos cansamos nós tão depressa das mulheres que nos amam loucamente e tudo fazem pela nossa atenção e nos apaixonamos pelas que...? Enfim.


Na bagageira, as malas chocalham. Da boca da mochila dele, esventrada no banco traseiro, espreita a gárgula negra da capa de Love is a Dog From Hell, de Charles Bukowski, testemunha zombeteira das misérias privadas daquele habitáculo no meio de nenhures, com ar de quem diz eu bem te avisei.


E então ela encostou o carro e parou. Simpatizou com aquele lugar do universo. Sorriu, passou levemente os dedos pelo braço dele, beijou-lhe os lábios e abriu a porta. O ferrão deteve-se. Era feito disso mesmo o amor dele ou lá o que se lhe queira chamar: de pequenas vitórias e pequenas derrotas, de centelhas de esperança e banhos de descrença, fazendo balançar, ora para um lado, ora para o outro, os pratos duma balança que não se via. Se ao menos ela o dissesse, de uma vez por todas…


Ele imaginava o deserto bem diferente: dunas, camelos, oásis, caravanas de beduínos, nada disso havia ali. O deserto são calhaus, calhaus encarnados, de todos os tamanhos, poeira, lacraus, casernas militares abandonadas e pistas que levam de nenhures a nenhures. Bem que ele imaginara um cenário diferente para aquilo que tinha em mente, para aquilo que ensaiara vezes sem conta, na véspera, no espelho quebrado da casa de banho da residencial Ibn Battuta, na última cidade antes do deserto, enquanto ela aguardava estirada na cama, com a sua camisa de noite negra. Mas aquilo era o que havia e não seria a desolação radical da paisagem que haveria de travar o passo aos sentimentos nobres. Inch Allah.


Quando ela abriu a porta do carro para retomar o caminho, ele deteve-a pelo braço e ela ficou a olhá-lo, sentada no banco, com as pernas morenas do lado de fora.
— Lara… Já pensaste na pergunta que te fiz?
— Já, mas ainda não tenho resposta. Quando quiser falar nisso, falo.
— Mas eu preciso de saber…
— Está calor aqui. Anda, entra no carro.


Ele ajoelhou-se na poeira e segurou-lhe a mão: — Não. Preciso que me digas. Prefiro ficar para aqui, sozinho, no meio do deserto, a viver um minuto mais na dúvida, sem o ouvir dos teus lábios.
— Deixa-te de disparates, anda. — disse ela, num tom meigo, passando-lhe os dedos pelo rosto e libertando as pernas para se sentar de frente para o volante.
— Não, Lara. Basto dizeres-mo. Senão, juro que fico aqui.
Por momentos, ele viu o seu próprio olhar suplicante e pateticamente apaixonado reflectido nas lentes dos óculos escuros. Ela aproximou então o rosto dele, beijou-lhe os lábios e sussurrou: — Como queiras.


Fechou a porta, pôs o motor a trabalhar e moveu o carro uns metros. Depois, deteve-se de novo e olhou-o pelo espelho. Não posso ceder agora, pensou ele, e ficou imóvel, ajoelhado no chão, com a palma da mão virada para cima como se pegasse ainda no fantasma da mão dela. Como ele não se movia, ela tornou a arrancar e ele ficou a ver o carro alugado desaparecer ao longe, sentado no chão, de olhar aparvalhado posto no ponto azul que desaparecia na poeira rubra.
Ela volta, disse para ele mesmo. Ela volta. Se existe justiça neste mundo, decência, amor, Deus, o que se lhe queira chamar, ela volta.


E ele esperou que o destino perfeito daquela tarde se cumprisse e ela tornasse a cruzar o horizonte, lhe caísse nos braços e lhe dissesse as palavras que lhe vedariam o peito contra as correntes de ar. O suor formava um regueiro em redor do seu corpo, rapidamente sorvido pela poeira estéril, mas uma coisa ele sabia: ela volta.


As horas passaram-se, o sol desistiu da espera e começou a desmarcar-se para ir dar luz a um outro desgraçado qualquer, para lá do horizonte, e ele, sempre na dele: ela volta.
Às tantas, veio a dúvida: será que ela volta mesmo?
E por fim, a certeza: ela não volta. Merda. Ela não volta.


Ao menos tenho a pista, pensou. É ir andando de volta na direcção do vilarejo mais próximo. Fica a cinco horas de distância, de carro, mas pode ser que passe alguém que me acuda.
No instante em que se levantou, sentiu o dia escurecer de repente. Olhou na direcção do sol e viu-o reduzido a um coágulo sangrento no meio dum manto rubro que engolia o céu e as nuvens e se aproximava a toda a velocidade.


Perto da pista erguia-se, precário, um casebre escavacado com frases em árabe tatuadas no reboco. Ele teve ainda tempo de buscar abrigo e ficou a aguardar que aquilo passasse. A poeira grossa açoitou as paredes de terracota durante longas horas, com um rugido ameaçador. Quando tudo acalmou, atreveu-se a espreitar pela soleira da porta, coberta por um monte de areia parda que lhe dava pela cintura. A paisagem em seu redor estava igual, mas totalmente diferente. Calhaus e poeira rubra, como sempre, mas outros calhaus e outra poeira. A pista sumira-se sob a tormenta. Depois da noite aparente, a noite real não tardava.

— E agora, como vou achar o caminho de volta? Donde viemos? Donde vim?

sexta-feira, junho 6

124 VIA LENTA

Dedicado a todos aqueles que sabem perfeitamente aquilo a que o título se refere
Que doçura, não é verdade? As luzes na terra, as luzes na água, a cidade, o rio, a maresia, os bentos salpicos de Tejo na fronha se conseguires lugar rente à borda. É verdade que tudo tem um ar meio seboso, a começar pelas cordas embebidas de óleo, sem esquecer as tábuas do convés queimadas pelo sal e a beata de SG Ventil cravada nos beiços do velho que ao teu lado deita olhares melancólicos para o fundo do rio como quem procura uma antiga namorada. Tens ainda de te abstrair dos urros e caralhadas trocadas entre marujos da água e marujos da terra. São marinheiros de água doce, todos eles, mas sabem mais do mundo do que tu aprenderias em dez vidas que vivesses. É um cruzeiro de pobres, mas também, por 74 cêntimos, estavas à espera do quê? Teu amigo é quem to diz: goza bem a vista sobre Lisboa, aprovisiona-a como quem enche o peito de ar antes de dar um mergulho, é a vista mais bela que terás à mão esta noite. Sejamos francos e directos: o mais belo de Almada é a vista privilegiada que temos sobre a Grande Alface. Quando andava na escola, tanto nos bombardearam com propaganda municipal, Almada, do lado certo, cidade de belezas sem igual, concelho de história, de tradição, de modernidade, tralalá pardais-ó-ninho que cheguei mesmo por momentos a acreditar nalgumas dessas patranhas. Sei que estás a desmentir só para me seres agradável, deixa-te disso que o desengano é a serventia da casa. O mais belo da margem sul, ou simplesmente a Margem, para os conhecedores, é esta vista que aqui tens, e a costa atlântica, bem entendido. Aí sim, a beleza é plena, mas o mérito não é do homem: o mar é o mar é o mar é o mar, é belo em qualquer parte do mundo (excepto, talvez na Inglaterra). Anda, salta, como toda a gente. Se esperarmos que eles estendam o passadiço ainda perdemos a camioneta. Que te parece a terra firme? A tudo isto chama-se Cacilhas.
Reza a lenda que o nome vem do «dá cá cilhas» que era dito pelos comerciantes ao descarregar a mercadoria dos barcos para o lombo dos burros. Não é propriamente lírico, bem sei. O cheiro é uma mistura de algas podres, óleo de máquinas e xamom rançoso. Não ligues ao rato espalmado no asfalto com marcas de pneu, é nova campanha da michelin, não sabias passas a saber. Aposto que não te arrependes da dúzia de ginjinhas com elas que esvaziámos nas Portas de Santo Antão! Em frente ao embarcadouro, para lá da caravana de táxis parados, uns beiges e outros verdes e negros, tens o enorme descampado, do tamanho de meio campo de futebol, que serve de terminal de autocarros a céu aberto. Para a direita, estendem-se o cais do Ginjal e Olho de Boi, uma doca estreita, escura e húmida, onde uma dúzia de fantasmas negros pescam bogas e tainhas pela noite adentro, em frente aos armazéns abandonados que ameaçam derrocada. Para a esquerda, tens os antigos estaleiros de reparação naval da Lisnave, também desactivados, uma lixeira de ferrugem a perder de vista, com docas secas, gruas, correias e maquinarias que destilam óleos antigos se faz chuva e assobiam das frestas se faz vento. É deixá-los estar quietos: com alguma imaginação e boa vontade, ainda se solda uma plaquinha de bronze àquele monte de ferro-velho para descerrar em vésperas de eleições com discurso e beberete, loas ao artista e direito a foto no boletim municipal, e com certeza há-de dar um bom monumento às «Conquistas de Abril» ou ao aniversário do «Associativismo Operário Livre». Ou a algo do género. Viver num concelho CDU por vezes dá a sensação de fazer parte duma recriação histórica do PREC, uma espécie de parque temático em que o rato Mickey usa bigode à Estaline. Digo-o com carinho. Do mal, o menos. Detestaria ver a freguesia ribeirinha de putas, marujos, estivadores, bêbados, carochos e loucos sonhadores substituída por meninos de fato e gravata com a pasta e o saco do ginásio numa mão e saquinho de papel da loja gourmet na outra. Os comunas, ao menos, mantêm aquilo num nível saudavelmente xunga. Sei que talvez não concordes comigo, mas eis o que penso: Portugal já foi uma nação de forcados, de campinos, marujos, pescadores de bacalhau, homens de barba rija, de pêlo na venta, gente de ardor, gente com raça, amante da paz, mas ciosa da sua honra e da sua liberdade. Mas uma seita de mariconsos e higieno-fascistas tomaram o poder sem nos termos dado conta e lentamente estão a transformar tudo a seu gosto. Eles não vão conquistar Cacilhas, jamais!, por cima do meu cadáver!
Que dizes? Que eu falo como se gostasse realmente disto? E quem te disse que eu não gosto? ‘Tou-te a topar: como eu disse que isto era feio, tu pensaste logo que eu não gostava. É preciso ser-se um cabrãozinho bem comichoso para só gostar do que é belo, não achas? Que o coração não é um esteta é ponto assente, e não me venhas cá com Platão, o que é belo não é necessariamente bom nem vice-versa, que percebia esse gajo da vida? É um gosto que se adquire. Nem é bem um gosto, para ser preciso: é uma visão do mundo, que quando te agarra, já não te larga. Se não fosse um lugar-comum, diria mesmo que é um estado de alma.
Por essas e por outras, não tenciono impingir-te nada. Uma visita guiada nunca fez mal a ninguém. Podia ter-te calhado pior cicerone. Agora corre, ainda perdemos a camioneta.

quarta-feira, junho 4

Conselho ao jovem escritor

Ouve bem o que este grande homem tem para dizer. Quando terminares, ouve de novo e de novo até entrar mesmo.

Charles Bukowski - "Poetry is a beer shit"

A minha tirada preferida: "Those who say the poet is a very private and precious person - I don't agree with. Generally he's just a dumb fiddling asshole writing insecure lines that don't come through, believing he's imortal, waiting for his imortality which never arrives because the poor fucker just can't write". Isto é tão verdade!

terça-feira, junho 3

Projectos de vida

1.º Escrever que nem um danado, trabalhar para a fama póstuma (que tem aquele doce e vingativo sabor do “eu bem dizia”)

2.º Bater a bota aos 28 anos, como o Morrison, a Janis e o Hendrix, de forma glamorosa, e dar um bonito cadáver (viúva chorosa e morgadito para viver à conta do nome e dos rendimentos do Freire Estate, certamente um maius)

3.º Dizer a umas quantas pessoas o quanto gosto delas

4.º Dizer a umas quantas pessoas o quanto quero que se fodam

5.º Ver, por fim, essas fotos de Cuba (!!!)

O mal das Due Diligences

Lição de vida para o jovem advogado: se não estás preparado para o que podes encontrar, o melhor é mesmo omitir toda e qualquer Due Diligence. Sobretudo quando o que está em causa não tem que ver com M&As.

Um dois três João não salva ninguém

Não sei ao certo como vim aqui parar, nem o que estou aqui a fazer. O que é certo é que voltei. Não se deve voltar aos locais onde se foi feliz, bem sei, mas agora cá estou e não há volta a dar-lhe. Esta porta, fechada durante anos, rangeu em ecos de mausoléu e, pela nesga, vi escorrer uma réstia de fumo sobrada de outras eras. E que eras! Foi a puta da loucura, queridos amigos.

A Di é agora uma advogada de sucesso, com o mesmo feitio de merda e carácter de ouro. O Nuno lá anda perdido por Barcelona, a acarinhar cancrozinhos em caixas de petri como se fossem tamagoshis (resta saber se a salvar a humanidade do cancro se o cancro da humanidade), a armar conflitos diplomáticos em estados-tampão obscuros do antigo bloco comunista e a sonhar com o seu bar na praia. O TM, bom, não faço ideia - tenho passado pela Lusófona, ocasionalmente, e enquanto espero pela razão que me leva lá, por vezes penso que seria giro aparecer alguém a falar das propriedades biológicas do tomilho ou das razões que fazem com que a Lomo seja melhor que sexo. São questões importantes que alguém deveria mesmo abordar nos dias que correm. A sério.

Quanto a mim, estou três anos mais velho e duas vezes mais louco. Fiz coisas de que me orgulho, outras que nem por isso. Nos tempos áureos deste blogue, andava o escrever o meu "Funafunanga", vivendo a fugaz ilusão de ter meia iuris-cáfila lisbonense crendo-me o anticristo e a outra metade achando-me uma espécie de Che Guevara; a trabalhar que nem um mouro e a escrever desenfreadamente até às três ou quatro da manhã para no dia seguinte retomar aquele Brotberuf que odiava e no fim de semana embebedar-me de caixão à cova nos piores antros para exorcizar tudo o que me fizesse lembrar das escolhas por mim mesmo feitas, livre e conscientemente, e também em busca de matéria-prima literária, há que dizê-lo.

Pessoas entraram na nossa vida. Pessoas sairam da nossa vida. Somos como uma porra duma Santa Apolónia, cada um de nós, simplesmente há uns poucos que vão ficando, tipo mendigo que está sempre sentado no mesmo local, com o cão, de mão estendida, num canto a tresandar a mijo mas onde ele se sente bem. Mesmo que, por muita estupidez, nos ocorra correr com essa personagem, ela volta sempre, para aquele mesmo canto, com a sua trouxa. É para esses que farei, ao longo dos próximos dias, um esforço para explicar, afinal, o "que vos queria ontem às 3 da manhã" (lembras-te, Di?)

sábado, fevereiro 25

As maiores vigarices da era pós-moderna: o "emprego ideal"

Este texto estava num dos meus blocos de notas e faz parte de um conjunto de dissertações filosóficas e sociológicas ainda em construção em volta da temática dos maiores embustes e os maiores charlatães da nossa era.

Hoje em dia, dir-se-ia que não existe um único ser humano nas sociedades ocidentais plenamente contente com a sua situação profissional. Tornam-se frequentes desabafos de o trabalho que fazem não ter a ver com o seu perfil, de não se sentirem realizados, da monotonia do quotidiano laboral.

Na era industrial, as reivindicações dos assalariados tinham a ver sobretudo com a remuneração e com as condições de trabalho. Hoje em dia, num período da história em que grande parte da população ocidental trabalha no sector dos serviços, essas reivindicações, apesar de manterem a actualidade, passaram para segundo plano em relação a outras mais “metafísicas”, que se prendem com a natureza do trabalho em si.
Mesmo quanto às reivindicações puramente materialistas, o assalariado da era industrial tinha sempre a hipótese da greve, da revolta proletária, da revolução socialista que, se não resolvia os seus problemas, sempre era uma excelente via de escape para a agressividade latente. Hoje essas manifestações estão profundamente fora de moda e pode dizer-se que caíram totalmente em desuso junto da classe média (com excepção dos funcionários públicos e, ainda assim, sem um décimo da violência dos tempos áureos), de mentalidade pequeno-burguesa e avessa a tudo o que cheire ainda que vagamente a “manias dos comunas”. A classe média, sociológica e economicamente, vive na encruzilhada por se encontrar a meio da pirâmide da exploração, que mais não é do que a velha e biológica pirâmide alimentar aplicada às sociedades humanas. Essa encruzilhada deriva do facto desta classe manter sentimentos de solidariedade com os dois extremos: a solidariedade com as classes baixas deriva do facto de, tal como elas, também a classe média sentir sobre si o peso da exploração capitalista; a solidariedade com as classes altas deriva de, tal como elas, também esta classe ter as suas poupanças e aforros a defender, ainda que a um nível mais modesto. Deste cerco deriva a mentalidade pequeno-burguesa, que se caracteriza justamente pela amarga consciência da sua própria exploração (tal como sucede com as classes baixas), combinada com a falta de coragem para se revoltar contra esse jugo, porque também tem algumas poupanças em jogo (tal como as classes altas). Daí deriva a posição de neutralidade forçada da classe média em relação à luta de classes. Não é verdade que a classe média não tenha consciência de classe, como defendem alguns marxistas mais ressabiados com a evolução da história pós-Perestroika. Ela tem uma mentalidade de classe extremamente arreigada e é essa mentalidade determina a sua ânsia de “estar de bem com Deus e com o diabo”, defendendo da melhor forma que lhe parece possível os seus interesses pequeno-burgueses—pequeno-burgueses, ou seja, burgueses, mas dos pequeninos…
Contudo, a frustração em relação à actividade profissional que aqui se fala não é a frustração que deriva da pura e simples exploração económica: ela é espiritual. O paradigma marxista da alienação revela-se completamente inútil para explicar este fenómeno, cujas causas não são materiais nem economicistas.

A frustração de muita gente em relação à sua actividade profissional deriva de um erro de perspectiva que tem a sua génese na democratização do ensino superior.
As pessoas frequentemente procuram um emprego que as faça sentirem-se “realizadas enquanto seres humanos”, que as “estimule”, em suma, que dê um sentido às suas existências. Este fenómeno é tão mais notório quão maior for o grau de educação dos trabalhadores.
Ao longo de séculos, as universidades eram vistas como catedrais do saber pelo saber, locais de discussão teórica e bastiões de conhecimentos herméticos, apenas acessíveis a uma pequena minoria privilegiada. As universidades serviam para instruir os filhos de famílias ricas, clérigos e nobres, que delas faziam fóruns de debates mais ou menos diletantes e desligados da realidade social: em suma, as universidades serviam exclusivamente quem delas não necessitava para a economia das suas vidas.
Com a democratização do acesso ao ensino superior, em muitos países europeus acompanhada pela gratuitidade, tendencial ou efectiva, do mesmo, as universidades viram-se invadidas por uma multidão de origens humildes que com enorme esforço económico reclamava delas não apenas a transmissão de conhecimentos teóricos pelo simples prazer de aprender, mas como veículo de ascensão social. Pela primeira vez na sua história, as sumidades catedráticas que povoavam as bibliotecas e anfiteatros académicos viram-se confrontadas por uma multidão oriunda da classe média que desprezava a teoria pura e reclamava por “cursos com saída”.
Compreende-se que essas novas gerações, ao fim de anos de grande investimento financeiro e intelectual na obtenção de uma educação superior, pretendessem, com o diploma na mão, ser de algum modo recompensadas por todo esse esforço. Assim, colocam toda a expectativa de uma vida realizada na sua colocação no mercado de trabalho.

Porém, buscam esse ideal no local errado. Aqui vem a dura realidade: trabalho é trabalho—não é suposto ser agradável, não foi pensado como instituição para contribuir para a realização espiritual dos seres humanos, e não há registo de nirvanas atingidos durante reuniões de negócios—ou tão pouco de coffee breaks… O trabalho cumpre, da perspectiva do trabalhador, única e exclusivamente uma função económica que é a de assegurar o sustento do próprio e respectiva família. Porventura retirariam os homens das cavernas prazer das caçadas a animais selvagens? Ou interrogar-se-iam sobre essa questão? Contudo, do ponto de vista da função social e económica, não existe diferença alguma entre caçar um mamute e trabalhar das nove às cinco em frente a um computador. Será que o camponês, cujos pais, avós e bisavós sempre foram camponeses e que nada mais possui além das suas terras, perde tempo a questionar-se sobre se trabalhar no campo será a actividade ideal para si, tendo em conta o seu perfil psicológico imaginativo e empreendedor?
Antes do alvor do epidémico mal de vivre laboral, as pessoas procuravam a razão das suas vidas, aquilo que as fazia sentirem-se realizadas, a outros lados que não à actividade destinada ao seu sustento: iam buscá-lo à família, aos amigos, eventualmente até à actividade política, cultural e artística. Não faziam exigências metafísicas e irrealistas ao trabalho, exigências para cuja satisfação tal instituição não foi idealizada, a e assim tinham uma relação equilibrada do ponto de vista espiritual com a actividade profissional que exerciam.

Pormenor linguístico típico do messianismo laboral: é frequente dizer-se “Eu sou advogado” em vez de “Eu dedico-me à advocacia” ou “Eu sou contabilista” em vez de “Eu trabalho em contabilidade”. Completa e inexorável projecção da imagem do próprio ser na actividade que se realiza para alcançar o sustento. Deveria haver terapias de grupo subsidiadas cujo objectivo fundamental seria criar seres humanos que, findo o processo terapêutico, afirmassem com toda a convicção “Advogado/Contabilista/Pastor/Arquitecto é aquilo que eu FAÇO. Aquilo que eu sou é infinitamente mais vasto, mais complexo e mais profundo!”.

O mais grave é que existem indivíduos—sobretudo psicólogos e técnicos de recursos humanos, genericamente chamados conselheiros vocacionais—que vivem de inculcar e perpetuar esta loucura na mente das pessoas. Estes estão entre os maiores charlatães da era pós-moderna!